segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Aí vem todo mundo


Entrevista com Clay Shirky, jornalista e escritor americano publicado pelo jornal A Gazeta do povo em 16/11/2009

Como diferenciar a cultura tradicional da cultura da era digital?

Quando terminei de escrever meu livro Here Comes Everybody (algo como “Aí vem todo mundo”, em inglês), tinha a impressão de que o comportamento determinava aquilo a que chamamos de cultura. Mas “comportamento” pode ser traduzido como motivação filtrada pela oportunidade.

O que a cultura digital faz é pegar motivações ancestrais – “quero estar conectado a pessoas de que gosto”, “quero ter mais autoconfiança”, “quero ser autônomo” – e apresentar a elas um monte de novas oportunidades. Tanto a ascensão da Wikipedia ou da comunidade de software livre oferecem uma oportunidade da criação coletiva.

Ninguém está no comando e ninguém tem a garantia de que sua contribuição será aceita, mas em algum lugar entre esses dois polos há uma cultura de compartilhamento, de combinação e de progresso.

A pergunta a ser feita é: “Qual valor conseguimos extrair destas oportunidades?” ou “como temos que mudar a cultura para ter vantagem com isso?”.

Dá para comparar as mudanças que vemos hoje com alguma outra mudança histórica?

Sim, com a invenção da cultura impressa, outro período em que o enorme acesso à informação mudou tudo. E quando ela apareceu, havia o temor de que ela centralizaria a cultura.


A nova tecnologia permitiria que todos pudessem ter acesso a livros, mas sempre aos mesmos títulos, e a noção de cultura se tornaria mais massiva, ainda mais porque era controlada pela Igreja Católica.


O que aconteceu foi o contrário – e até hoje eu fico impressionado como a Elizabeth Ein­seins­­tein fala bem sobre essas mudanças sociais em seu livro A Revolução da Cultura Impressa (Ática, 1998).


Em vez de um mesmo livro ser lido por milhares de pessoas, uma pessoa po­­dia ler milhares de livros. E o cho­­que da diversidade – de for­­mas de pensar e viver - virou –o mundo de cabeça para baixo.


A internet é uma ferramenta para acessar informação, isso é óbvio, mas é uma ferramenta muito mais importante para conectar uns aos outros. E a variedade de formas de pensar e viver está apenas começando a crescer porque, de re­­pente, a ideia de nicho – você achava que era a única pessoa do mundo que gostava de de­­terminada coisa ou que fazia uma atividade de um jeito diferente – pode ser expressa so­­cialmente.


Antes da consolidação da internet assistimos a diferentes movimentos, como a questão ambiental, a luta pe­­los direitos civis ou os direitos do consumidor, que começaram localizados e se tornaram globais.

Essa mudança poderia acontecer sem a invenção da internet?

Perceba o seguinte: embora a revolução científica não fosse possível sem a invenção da cultura impressa, ela não foi a causa da revolução científica.


O que vemos com a internet é a ascensão de uma plataforma que permite o pensamento global numa época de problemas de escala global.


Esse foi o ponto da revolução científica: não foi que os cientistas descobriram que havia a mídia impressa em que eles poderiam publicar suas descobertas, mas o fato de eles perceberem que precisavam de uma cultura em que uns lessem o que os outros estavam fazendo e em que pu­­dessem se desafiar uns aos ou­­tros.


O foco agora deve ir para es­­sas normas culturais que po­­dem mudar a forma como usamos a internet.

Há algo em andamento hoje que seja semelhante àquela revolução científica?

A mudança política vai ser a revolução científica desta geração.


Precisamos pensar em um conjunto de normas culturais que nos permita lidar com questões que afetam todo o planeta.


Não temos isso ainda.


Transformar o mundo inteiro em um só país com um único governo não é a forma correta de lidar com isso, pois é um retrocesso colocar o controle do mundo na mão de um grupo de líderes, mas os modelos que temos hoje também não são apropriados.


Temos que pensar em formas de lidar com o engajamento político global. Algumas das principais transformações hoje são em países em desenvolvimento.

Marshall McLuhan dizia que a cultura digital é mais próxima da oral do que da escrita. Países menos alfabetizados têm mais facilidade de compreender a cultura digital?

Para isso precisaríamos que as possibilidades de participação coletiva que vivenciamos principalmente online se tornassem disponíveis não de forma escrita, mas através da voz; não através de computadores, mas de telefones.


O telefone é o principal dispositivo de contato para a maior parte do planeta; 4,5 bilhões de pessoas usam o telefone, enquanto outros 3 bilhões usam celulares.


Vi­­vemos num mundo em que é muito comum acessar a rede global. O que essas pessoas fazem na internet – se escrevem, leem, tiram fotos ou fazem filmes – é o de menos.


A oportunidade e o desafio é como iremos fazer que a motivação social da internet esteja disponível para qualquer um que tenha um telefone, e não só para quem tem computador.


E tem coisas que você pode fazer no telefone que não dá para fazer na web. E não estou falando de um iPhone, mas de aparelhos que façam apenas telefonemas e enviem SMS. Acho que é um gran­­de desafio pensar nesses sistemas de organização social.

Você acha que o Brasil é um agente desta mudança?

Claramente. O Brasil é o primeiro país a se alinhar inteiramente a um modelo de compartilhamento como forma de progresso econômico, cultural e social.


E isso aparece em diferentes níveis, desde o mais baixo – como a cultura do funk de favela, que pressupõe o com­­­partilhamento em sua essência – até o mais alto, com o presidente Lula dizendo que prefere soluções open source para os problemas do país.


Há outros países que estão se de­­­senvolvendo desta forma, mas nenhum outro está tão à frente quanto o Brasil.


E é por isso que eu acho que o Brasil é um dos países mais importantes do mundo hoje.

E o resto do mundo percebe isso?

O mundo não percebe isso co­­mo um todo, apenas como exem­­plos que se desenvolvem isolados uns dos outros.


Não há a consciência de que essas iniciativas façam parte de um todo, mas que há, de fato, uma cultura brasileira que está sendo desenvolvida ao redor desses modelos. E isso é a coisa mais importante – não só em relação ao País, mas à forma como encaramos cultura digital no planeta.

Um comentário:

  1. Discordo em parte do autor. Acho que o termo mais apropriado seria Cultura Virtual e não Cultura Digital. A cultura digital já existe muito antes da internet. No Brasil quem viveu na década de 80 sabe do que falo. Os usuários de TK-85, MSX, Amiga, Aple2 já desenvolviam cultura digital. Mas esta era restrita a nichos universitários ou técnicos. Houve algumas mudanças desse movimento no mundo exterior sim, podemos citar a influência do uso de gráficos trimensionais e dos sintetizadores como advindos da cultura digital. Isso já a partir da década de 70. A própria cultura do videogame é um fruto da cultura digital.

    Por isso, acredito eu, que o termo escolhido pelo autor não foi o mais correto. Digitalização já existia antes da Internet. O que foi fato novo foi a facilidade de disseminação dessa digitalização o que antes não ocorria tão facilmente.

    ResponderExcluir